Nunca estive dentro do que se convencionou chamar de belo. Sempre fui grandona, sempre estive acima do meu peso e, como todo mundo, já me engalfinhei com o espelho algumas vezes. Mas nunca quis deixar nenhum publicitário, ou quem quer que fosse, fazer com que eu me sentisse mal por isso. Nem sempre isso é fácil. As cobranças, as de todos os dias e as próprias, são, às vezes, difíceis de lidar. Mas um dia desses eu experimentei uma sensação muito gostosa. Como uma criança, pude me ver sem os tormentos dessa nossa estética para o consumo. Eu e meu namorado fomos a um motel. Até então eu nunca entrara em um, e qual não foi o meu desconforto ao deitar e dar de cara com aquilo sobre mim: um baita espelho no teto, sobre a cama. Achei estranho ficar ali me olhando o tempo todo, nem tanto por causa do meu corpo, que eu e o meu namorado até que não temos problemas com vergonha ou desconforto na presença um do outro. Eu achei foi meio esquisito mesmo. Mas com o tempo, o espelho deixou de incomodar e era até legal. Foi aí que veio o sobressalto.
De repente, eu olhei para cima e lá estava o tal espelho. Nele, lá estava a minha imagem, nua, deitada e pregada no teto. E qual não foi a minha surpresa ao ver ali, sobre mim, uma imagem tão terna, tão sensual… tão… tão BONITA.
Era eu… eu e o meu quadril largo, e a barriguinha que eu tenho e todo o meu grande corpo. Era sinuoso, era feminino… Me senti como saída de uma tela renascentista. Fiquei tão feliz e surpresa, e estava tão bela, que ri do encontro com minha própria imagem. Eu me via sem os filtros da moda, da TV, do consumo ou da autocensura. Eu amava, era amada e era bonita sim. Verdadeiramente bonita, do jeito que eu sou. Comecei a pensar, então, que muita gente tem problemas com o próprio corpo. Desde muito cedo a gente aprende beleza como algo pronto, estreito e associado à realização, felicidade, aceitação. As revistas, a TV… são sempre pessoas tão magrinhas, tão saudáveis, sorridentes e felizes! Somos fadados à frustração. Daí fico imaginando tudo que se engole sem pensar, tudo que a gente cospe sobre os outros sem refletir. Penso no que a publicidade nos despeja, nas angústias que a gente compra. Ser bonito é simples e é um direito. Tanto jeito de se curtir, tanta forma de estar bem… Enxergar pequeno é coisa de cavalo.
Memória Radcal: O texto “O espelho tem duas faces” foi publicado originalmente na 18ª edição do Jornal Radcal, em dezembro de 1999.
Tais Peyneau é jornalista e brasiliense. Integrou o Conselho Editorial Jovem e ajudou a construir o Jornal Radcal.
O trabalho da ilustradora Frances Cannon é simples, direto e poderoso. Nos convida a desafiar padrões e olhar nossos corpos com afeto.