Texto por Severino Francisco, jornalista e editor do Jornal Radcal
Certa vez, uma repórter desavisada perguntou à Athos Bulcão (1918-2008) o que ele fez na Semana de Arte de 1922 e ele respondeu: “Eu fiz quatro anos”. Mas, embora não tenha participado da Semana de 1922, Athos é um artista moderno da cabeça aos sapatos. Como todo grande artista modernista, o suporte para as suas invenções pouco importava. Onde tocou, ele deixou a marca do seu talento: pinturas, desenhos, esculturas, fotomontagens, máscaras e colaboração de arte/arquitetura. Athos trouxe à Brasília um pouco do que havia de melhor no modernismo brasileiro.
A princípio, a timidez é um empecilho para constituir uma teia de amizades. Mas a de Athos tinha algo de encantador. Ele fez amigos por onde passou, com o seu silêncio, delicadeza e senso de humor. Os amigos foram mais importantes do que as escolas e os movimentos em sua formação. E que amigos! Oscar Niemeyer, Vinícius de Moraes, Darcy Ribeiro, Fernando Sabino, Jorge Amado, Portinari, Paulo Mendes Campos, Burle Marx, Di Cavalcanti, Pancetti, Scliar. Uma verdadeira constelação modernista. Athos pertencia àquela estirpe em extinção dos cariocas ilustrados, civilizados e elegantes, espiritualmente elegantes.
Ele era da raça dos tímidos, dos que ficam esperando em casa que alguma coisa boa caia em sua cabeça como um raio. Quase sempre era salvo por um amigo. Oscar Niemeyer o convidou para realizar umas intervenções de arquitetura da Novacap e ele nunca mais abandonou a cidade. Era uma época em que passava por dificuldades financeiras, sobrevivendo da atividade de decoração de interiores, que ele abominava. Por sorte, Brasília, a mais avançada cidade moderna do século 20, caiu não em sua cabeça, mas a seus pés, proporcionando uma rara oportunidade a um artista de intervenção na arquitetura de uma cidade.
Chegou à Brasília no momento em que a cidade era um imenso descampado envolvido na poeira, arrastada por redemoinhos, batizados de “lacerdinhas”. Contudo, isso não impediu que ficasse hipnotizado pela paisagem áspera, a amplidão do céu, a luminosidade, o silêncio, as noites sem luz com a abóbada cravejada de estrelas. A sensação de espaço encantou Athos. De modo que ele achou muito natural permanecer em Brasília. Era uma cidade boa para se trabalhar.
Em Brasília, imprimiu a marca de sua elegância, requinte e vibração de cores em mais de 200 obras de integração arte/arquitetura. Sem recorrer a nenhuma tradição, Athos desenvolveu uma estética moderna do azulejo na arquitetura, optando pelo abstrato em detrimento do figurativo, buscando uma síntese extrema, pesquisando efeitos das formas geométricas em relação aos espaços públicos. O azulejo tem a função de imprimir leveza, arejamento, sensação de luz no ambiente.
“Artista eu era. Pioneiro eu fiz-me. Devo a Brasília esse sofrido privilégio. Realmente um privilégio: ser pioneiro. Dureza que gera espírito. Um prêmio moral”.
No entanto, antes de chegar a Brasília, Athos acumulou muito conhecimento e ciência da arte moderna, aprendendo sempre com os mestres. A iniciação à pintura se deve ao amigo Portinari, com quem trabalhou no mural de São Francisco, no Museu da Pampulha, a primeira obra em que Oscar Niemeyer subvertia a rigidez do modernismo internacional da arquitetura, introduzindo a curva barroca brasileira na dureza do concreto.
Portinari era um grande amigo, de personalidade muito forte, que costumava formar uma legião de discípulos e acólitos. No entanto, Athos conseguiu driblar habilmente a tentação de copiar o mestre. Realizou uma obra que não tem nada a ver com o universo marcado pelo gosto figurativo, o engajamento social explícito e a influência do realismo socialista. A elegância, a polidez e gentileza de Athos enganava os incautos. Ele era delicadamente rebelde. Em arte, só fazia o que lhe dava na veneta. Atribuía esta suave, mas firme rebeldia, à indisciplina e à convicção inabalável de que cada um deve fazer o que realmente deseja. Para Athos, em artes só existia uma regra: o talento. E o talento de Athos está inscrito em toda a cidade. O poeta Vinícius de Moraes costumava dizer: “Yo no creo em Athos, pero que hay, hay”. (Eu não acredito em Athos, mas que ele existe, existe”. A obra de Athos irradia modernismo e algumas de suas máscaras poderiam figurar nas capas dos discos de Renato Russo. Athos tinha um espírito coletivo, comunitário e cívico e inspirou a criação de uma fundação que se dedica a projetos de arte educação com os adolescentes do Distrito Federal, que, instantaneamente, entram em sintonia com a alegria, a vibração de cores e o espírito visionário de sua obra.
Fundathos
A Fundação Athos Bulcão, criada em 18 de dezembro de 1992, é uma entidade de direito privado, sem fins lucrativos, declarada de utilidade pública distrital, qualificada como Organização da Sociedade Civil do Interesse Público – OSCIP e certificada pelos Direitos da Criança e do Adolescente do Distrito Federal. Criada para preservar e divulgar a obra do artista plástico Athos Bulcão, desenvolve diversos projetos visando contribuir com a formação de crianças, jovens e adultos e tornar a educação, a arte e bens culturais acessíveis a toda a comunidade, assim como as obras do próprio artista.
Conservamos, pesquisamos, comunicamos, documentamos, investigamos e expomos o acervo de Athos Bulcão para fins de estudo, apreciação e educação. Investir e preservar o patrimônio cultural é trabalho permanente da Instituição, que a partir disso, desenvolve programas, projetos e ações que utilizam os bens culturais deixados por Athos Bulcão como recursos educacionais, turísticos e de entretenimento, estimulando em seu público uma percepção crítica da realidade, valorização da arte brasileira e seu patrimônio e do conhecimento. A Instituição possui vocação para exposição, documentação, investigação, interpretação, preservação e comunicação, permitindo seu acesso público e se constituindo como espaço de relação e mediação cultural com orientações patrimoniais e artísticas.
Conheça a história projetos desenvolvidos pela Fundação no site www.fundathos.org.br